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Thursday 27 March 2008

Aí você chegou, me trouxe chocolates, me pegou com os cabelos molhados, eu tava faxinando a casa, passando cera, corri pro chuveiro, chuá, e eu não falei pra você ficar, eu sabia que não adiantava, você sabia que não adiantava, aí eu fiquei só abraçada nas suas costas, olhando você olhar pra mim e olhando o relógio, querendo puxar os ponteiros de volta, e isso eu também não te falei, não te falei que eu estava precisando muito de você e que bom que você veio, senão eu ia ficar com um buraco, senão o dia ia ser inconseqüente, muito Luz del Fuego, muito o filme chato da Melissa P., uma bagunça que não ia dar certo.
O dia amanheceu ruim, deixei os amigos em casa, sai cedinho cedinho pro trabalho, detesto ônibus, detesto metrô, detesto ônibus de manhã, de tarde e de noite. Ônibus não funciona. Tudo na minha vida agora tem que funcionar, mas tem coisas que ainda simplesmente, sem explicação, ainda não funcionam, e o ônibus de todo dia de manhã é uma delas, fico cansada, não é justo acordar todo dia e morrer esmagada de pé em quatro rodas que pulam e não andam, e hoje eu estou de mau humor. Me veio agora na cabeça aquele papo de parágrafos, e daí escrever sem parágrafos?, ta tudo escrito, o negócio é que o texto era ruim, o texto não tinha fim, era repetitivo, era chato, mas não tinha nada a ver com os parágrafos. Vou escrever cinco páginas sem parágrafos se me der na telha. Claro que ele, quando escreveu o texto, não estava nem aí pros parágrafos, e talvez tenha visto que o texto estava mesmo muito ruim e talvez por isso tenha parado na metade. Oras. As pessoas têm o direito de começar e parar de escrever quando sentirem vontade. Volta. Então eu voltei pra casa, toda amassada de novo, não tanto, o mundo inteiro vai pra Paulista de manhã, ninguém sai dela, só eu, hoje, eu voltei por que me mandaram, e o que é que se vai fazer numa hora dessas, aí eu voltei torcendo pro menininho que estava dormindo que nem anjo ainda estivesse ali no colchão da sala, a gente ia ver aquele filme horrível sobre a Melissa P. e ficar falando mal dele depois, aí a gente ia ficar falando bobagem como nos velhos tempos, mas ele não estava, foi cedinho, e ainda deixou minha porta aberta. Assisti o filme sozinha, as meninas dormiam no quarto, assisti baixinho, duas horas no latão do lixo. Eu li o livro. Tinha achado uma merda. Aí eu vi o filme. Pensei, ah, mas deve ser uma bosta, e era, eu sabia, mas agora já estava alugado mesmo, quando eu vi, tum, ele estava dentro da minha sacolinha da locadora. Devia ter assistido “O Cheiro do Ralo” pela terceira vez, esse livro sim é bom, o filme também, assistimos duas vezes ontem, eu, as meninas e o guri com sono de anjo, deu vontade de dar um beijo na testa dele antes de sair, mas vai que ele acorda, vai que ele leva a mal, vai saber. Devia ter dado, não sei quando vou encontrar ele de novo por aí sem querer que nem tem sido nos últimos anos. Tem coisas que não ajudam, eu queria ficar em silêncio, mas tem um cara aí na minha janela gritando sem parar “Henrique! Henrique!”. Colocaria minha cabeça pra fora e gritaria pra ele calar a boca se na minha janela não existissem grades, sim, minha prisão particular, serve pra ninguém que não é daqui continuar não sendo daqui, eu fico aqui quietinha e ninguém me incomoda. Quinze minutos. Isso não é tempo relevante pra ninguém mandar ninguém embora, eu pego ônibus, viu?, ô-ni-bus, ônibus em São Paulo não anda, não às oito da manhã, tem um monte de gente que não quer te deixar passar e passar em cima da sua cabeça, e eu me esforcei e cheguei com quinze minutinhos de atraso. Casa. Ta brincando? Não. Volta. AH, mas que diabo, vou voltar pra dentro de um ônibus. Pelo menos vou poder fazer minhas unhas, ver meus saldos, fazer meus planejamentos, dar uma cantadinha, ler uns livros, escrever pra ele, devolver os filmes pra locadora. Não pensar nessa gente toda que não anda de ônibus às oito da manhã, vou escovar meus cabelos, jogar um perfuminho, uma roupinha e colocar minha cara lá fora, onde o vento bate e o dia morre antes de mim, por hoje. Hoje eu queria escutar a voz dele, como você está?, me mandaram de volta, querido, o que eu posso fazer?, eu estou bem, né, e você?, eu estou com saudade.

Tuesday 18 March 2008

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A noite em São Paulo. Tudo se renovando e tudo como sempre. Observei da sacada com o amigo que estou gostando muito. Café com conhaque. Só faço isso lá. Uma página de um livro e um deja vu. Quase nunca acontece. Esqueci de comentar com ele. Um deja vu daqueles que a gente quer até escrever um roteiro de filme só pra incluir a cena. Falando de coisas banais com certa devoção. Nenhum embaraço. Alice fica à vontade. Não me recordo direito, mas eu me parecia com filmes iranianos? Não me lembro. Queria lembrar. Ultimamente as pessoas que gosto tem-me feito comparações. Miss Sunshine. Em pleno outono e inverno. Grata, mas espera, então, se isso (de repente) está virado pra fora, pra dentro sobrou o que? Quem eu sou vista de fora? Uma estranha. Agora vejo o ponteiro do mouse mexer sozinho até quando estou em casa. Agora me lembro das pernas despidas, numa festa com moças que cobrem pernas com finas meias. Brancas. E eu sempre à mostra. Sem meias. Ou com metade das meias. Até pouco abaixo dos joelhos. Um blog com cara de linha puxada. Tenho cigarros, mas não tenho isqueiro, o que é pior que não ter cigarros. Não aborreci-me com o comentário daquele estranho. Ele coçando sua barba olhando pra mim. Fale. Fale. Não falei. Corei e não falei. Só cuidei pra não largar nada enquanto tudo não ficasse arrumado. Sou uma menina caprichosa. Disso, o estranho sabe. Ele fica olhando, vê minha memória e minha pouca habilidade com os cacos de vidro. Vou sonhar com isso. Vai mesmo. Mas eu não respondo. Agora nem coro. Agora eu não ligo. Meu respeito pela humanidade voltando. Ele enrolando uma mecha do próprio cabelo enquanto fala. Fila de livros. (Não esse tenso torcer de mãos... esse teto escuro e sem estrela).
Inclusive, conheci o Carlaccio ontem do nada, enquanto tomava uma cerveja num quase-boteco. Li seu Um Drink no Bunker no fundo da H. Conheci a Lu (Lu por pura intimidade, adquirida já nos tempos de trocas de e-mails cheios de substâncias existenciais, furadas e sérias). Ela tinha escrito um conto sobre uma garota que amou tanto que perdeu a própria dignidade. Ela sim, a Lu, é um verdadeiro raio.
Pela primeira vez, acordei de manhã e me vi: Esse negócio de ser a gente mesmo incomoda. Mentira. Eu nunca mais vou sentir um cheiro de manhã e não lembrar de quando eu me sentei ali. Faz frio na noite de São Paulo.
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Escuta, Layla, eu avisei. Ouve. Olha no espelho. Eu avisei. Eu bem que te disse. Você foi querer ir pra lá. Foi querer ficar olhando. Você disse que ele não tinha cheiro nenhum, Layla. Uma pessoas não pode ter cheiro nenhum. Tem que ter cheiro de alguma coisa, de morte, de incenso, de suor, de doce. Tem que ter alguma coisa. Mas ele não tinha nada. Ele tinha uns botões da camisa abertos e você foi querer justo ele. Aquele que te chamou de morta, que viu que você vai morrer em breve. Ele viu que você não vale a pena de cara. Não adianta ficar desse jeito. Ta ridícula com esse batom. Nunca te vi assim. Uma carcaça. Puta. Puta três vezes. Você disse que ele não olhou no seu olho, Layla. Como você acredita em alguém que nem te olha no olho? Como você acredita em alguém que nem te beijou quando você estava no chão e ainda disse “fica com Deus, gatinha”?. Deus é o caralho, Lay. Ouviu? Deus é o ca-ra-le-o . Eu sempre te disse. Não borra meu lenço de batom, enxuga só as bochechas. Queria que ele te visse assim. Vê se tu bota na cabeça. Você é sozinha. Você nasceu assim. Vai, ré confessa. Devolve o que não é teu e te arranca. Sinceramente, Lay, estou começando a ficar com raiva de você.
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Fazia um tempo, o sol não saía mais, ele estava ali, claro, queimando minha cara e queimando minhas costas cansadas, mas eu não sentia. Eu fiquei ali com as placas, um monte de feministas gritando “eu sou mulher, sou feminista!” e tocando Elis, Rita, Duncan, Caetano, essa gente que fez letras assim pra tocar em passeata, e eu ali com as placas, meio querendo ir embora, meio querendo dar um grito, meio querendo mandar passearem os moleques que não gostavam de sol e pinga quente.. Comprei toalhas novas pra mesa, fiquei com a veia inchada, está verde, me assusto quando olho e por isso não olho, esperei pra dizer pra ele que não tem jeito, é ele mesmo, logo ele, não tem jeito. Ele chegou tarde, chegou hoje, com seus lábios, dedos e línguas, com sua pilha de manias e esparramou tudo ali no meu sofá e usou os meus óculos pra ler coisas que eu não queria que ele lesse, eu pensei, ai é ele, é ele, é ele, droga, mas que droga, não era pra acontecer. Aconteceu. Agora ficou tudo pra limpar, perfume, porra, cinza, lixo, os lixos da gente que a gente não quer, que não dá pra conviver, ficou tudo ali e está tudo sumindo. É o que sobra, um monte de lixo. Virou um monte de lixo.
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Eu pensei que nunca ia falar com ele, nunca ia falar a língua dele, mas agora eu falei, ele do jeito dele e eu do meu, mas a gente conversou, ele olha seriamente, fala seriamente, escreve seriamente e eu olhava e falava mas que saco, assim não tem graça, e fazia minhas coisas e guardava minhas coisas e ia ser assim pra sempre, só que agora não é. Agora estou ficando velha, tenho vinte anos, meu deus, não era pra eu estar velha, não era pra gostar de coisas velhas, não era pra eu ser uma colecionadora, não era nem pra eu olhar pro relógio, mas acabei de olhar pro relógio, foi agorinha, e vi que eu envelheci mais uns cinqüenta anos.